#1 Contos Íntimos: Só uma noite não é suficiente

Contos íntimos para mulheres que amam mulheres

CONTOS ÍNTIMOSSAPATÃO

9/19/20254 min read

Sabe quando você encontra uma pessoa que transpassa tudo o que você tinha de ideal na cabeça? Tudo é refabricado: a forma como nos relacionamos, as normas não ditas, o respeito mútuo, as expectativas e o modo de amar — recíproco e honesto.

Sentir paixão é uma das coisas mais bonitas que existem, e quando se soma à intimidade, a fórmula parece ultrapassar os limites do que o coração é capaz de suportar. A paixão transborda, revelando que sempre haverá algo a florescer.

Ainda na aurora simbiótica da paixão, estar com Clara era me encontrar aos poucos. Era ali que me reconhecia. Eu adorava esse meu espanto de lar nas vivências do dia a dia com ela. Eu me (re)encontrava quando estava com ela, como se aquele momento já tivesse sido vivido — ou melhor, como se eu soubesse que ele existiria. Não por ela me mostrar um caminho mais amável, mas por eu me reconhecer em todo percurso recém-chegado. Me reconheço no afeto, nas trocas femininas, na dor diante de uma cena normalizada, e em tantos outros cantos onde me faço mundo — o mundo de uma mulher.

Era uma sexta — uma sexta bem sáfica, como gostávamos. E para turbinar a comemoração das trabalhadoras exaustas, era nosso aniversário de namoro. Estávamos comemorando dois anos juntas. Alugamos um chalé afastado das luzes da cidade, onde ouvíamos os pássaros antes das buzinas. Rústico, colorido e pitoresco — como havíamos planejado.

Fomos até a lojinha do Seu Sebastião, indicado pela anfitriã da casa, comprar algo para cozinharmos. Por ser uma área afastada, as opções eram poucas. Nos restou preparar um carbonara que, modéstia à parte, a gente faz com maestria. Um vinhozinho, chocolatinho — não precisávamos de mais nada.

Ao voltarmos para o chalé, com as mãos ocupadas pelas sacolas, Clara avistou um cachorro mesclado, magro e de olhos famintos, latindo miudamente e abanando o rabo em nossa direção. Clara não hesitou. Agitada, vasculhou rapidamente as sacolas em busca de algo para alimentá-lo. Deu um pedaço de pão ao serzinho livre na rua.

Seu ato, tão simples e espontâneo, me atravessou. Alimentar com o que tinha em mãos e, ao mesmo tempo, falar dos maus-tratos e do abandono dos animais no caminho de volta, me fez vê-la com olhos ainda mais inflados de admiração. Sua sensibilidade ardia nos meus olhos com a tal compatibilidade. Meu coração gritava de conforto — que se transformou, sem esforço algum, num tesão megascópico: eu quero deter essa mulher pra mim.

O pensamento possessivo me corroía a ponto de se confundir com desejo. Que apetite era esse? Encostei minhas mãos nas dela. Ela me devolveu um sorriso espaçoso e eu me reconheci novamente. Estava onde queria, com quem eu queria.

Sem querer perder tempo para o tempo, abandonamos as sacolas em cima da mesa e eu a puxei para um canto. Atordoadas pelo desejo incessante, não sabíamos nem por onde começar — afinal, o começo já havia sido devorado pela ânsia de viver sem planejamento.

Quando fez de seus dedos mestres os donos de mim, eu estava completamente entregue às suas aventuras. Clara passeou com sua mão direita pelas minhas curvas e depois pousou nos meus seios, acariciando de uma forma que nenhum homem é capaz — o toque era sutil, porém feroz, os movimentos precisos e seguros de si. Tinha amor, tesão e muitos gostares.

Dedos leves como ondas suaves — deixei-me mergulhar. Seus dedos dançavam. Iam para dentro, vinham para fora, num ritmo profundo e sinfônico. Clara abriu minhas pernas, faminta, e desceu ambiciosa, complementando com a língua sua arte de me enlouquecer com movimentos incertos que acertavam meu clitoris ao ápice.

Intercalava com o olhar em meus olhos. Ora eu olhava nos dela, ora fechava para sentir o todo. Meu entusiasmo era tanto que não queria gozar. Nem precisei dar as coordenadas para amplificar meu deleite carnal — ela já sabia me ler. Ela não cansava, e me comia com os dedos e a língua com voracidade, mas de uma sutileza tamanha.

O corpo entrou em erupção. Faíscas queimavam meu corpo no instante. Fiquei em inércia por alguns segundos. Minhas pernas ardiam de tanto se contorcer, meus pulsos doíam, e eu suava — deliciosamente salgada pelo incessante prazer. Ainda em pé, puxei-a para cima. Os olhos mansos se encontraram e ficamos ali, ambas encarando quem éramos nós diante daquele inesgotável desejo.

Puxei-a para a cama e ficamos frente a frente, uma tocando a outra. Não queria tirar meu olhar do seu. Os braços rígidos e concentrados, as pernas contraídas, o corpo em leve rebolar ao encontro carnal. Tudo era uma experiência única, como se nunca tivéssemos vivido aquele intenso apetite. Seu cabelo mexia e caía em seu rosto, a deixando inda mais linda.

Observava seus seios bem desenhados bailando sobre os lençóis úmidos e tudo me soava como uma cena cinematográfica, mas cheia de sentidos vívidos. Tudo era um cenário propício para o êxtase. No meu aviso de que estava prestes a chegar ao cume, seu movimento acelerou e seu sussurro aumentou o tom — transformando o gemido em combustível altamente inflamável.

Juntas chegamos ao céu, abençoadas pela sincronicidade que pouca gente detém. Cada dormência valeu a pena. Ao nos olharmos, satisfeitas por ora, sabíamos: essa entrou para o nosso catálogo de transas primorosas.

Tudo poderia ser igual, mas não foi. Acredito que a arte de reciclar desejos está na imaginação e na sua concretude. É necessário fazer o de sempre como se fosse único — porque, no fundo, sempre será único.

Após longas horas de peripécias, levantamos, mesmo não querendo, para preparar o jantar que nosso estômago esperava ansioso. Enquanto cortava o bacon, vestida apenas um blusão de frio, ela me chega por trás, beijando meu pescoço devagar, com carinho, com vontade. Meu corpo se encrespou, e meus pés devolveram o toque. Estava fértil. Abandonei a faca e virei-me. Sua boca rosada de tanto beijar desceu, e eu fui junto ao chão.

Fomos chão. Fomos céu. Cobaias desse escandaloso e violento desejo.

Existem paixões que não se explicam — se sentem. E, às vezes, sentir é o mais alto grau de sabedoria que se pode alcançar. Amar uma mulher sendo uma mulher é também revisitar o corpo com outro olhar, outro cuidado, outro tempo. É resistência, é descoberta, é viver sem ensaio, sem espera. E quando o afeto e o desejo se encontram, o mundo inteiro se curva diante do que só duas mulheres sabem construir: um território onde a intimidade vira revolução.

ATÉ JÁ