Caminhadas sobre o tempo
ESCRITASBLOG
7/29/20253 min read


Hoje o tempo aqui na serra não está muito bonito: nuvens carregadas, um vento gelado e bruto, com um solzinho indeciso — aquele que se esconde rapidamente quando a gente está começando a se aquecer. Que raiva que dá! Bem, como estou de férias, resolvi sair para caminhar no ar fresco e explorar meu bairro.
No meio do caminho tinha um vento — um vento não, uma baita ventania gelada no pescoço. Se continuar exposta nesse vento, desprotegida como estou, vou acabar gripando. Pensei, com uma leve sensação de coriza já se formando nas minhas narinas — depois dos 30 a gente se pega mais cauteloso com nossas escolhas. Vou voltar, pensei.
A padaria cheirava a pão fresco e, aproveitando o ensejo do passeio, levei pão fresco e mais algumas coisinhas que estavam faltando em casa. Mais pra cima da rua, onde se vê a cidade coberta de montanhas, fui no hortifrut — o hortifrut mais singelo e completo que já entrei. As verduras estavam brilhando como se acabassem de sair da terra. Dona Eleide frisou o olhar ao meu e me ofereceu o mel do Seu Luís, disse que estava fresquinho e que logo logo iria cristalizar, pois o clima esfriou. Gosto quando o mel está cristalizado e você passa em cima de uma fatia de pão torrada com manteiga. A crocância, juntamente com o agridoce, me enchem a boca de água, tem sabor afetivo, recorda algum lugar de onde já vivi. Como não sou besta, não resisti e acrescentei o mel na sacola.
Pós-visita à padaria e ao hortifrut, andando pela calçada mal construída, em frente à loja de materiais de construção, estavam expostos uns panos de chão. Lembrei que precisava trocar os lá de casa. Prefiro comprar aqui no meu bairro e valorizar o comércio local, pensei. Ao entrar, fui acompanhada por um homem totalmente embriagado e de sorriso largo no rosto envelhecido. Olhei para trás e lá estava ele, como se nunca tivesse visto uma mulher de roupa de academia. Para de me olhar, senão eu vou ficar brava, pensei olhando para ele, mas meu olhar certamente traduziu todos os meus pensamentos raivosos, implorando por respeito, pois logo ele se virou e fechou a sua boca desdentada.
Por um instante, lembro que sou mulher e que esse mundo é inseguro demais para a nossa liberdade. Segui, mas agora com rigor no olhar, já mais rígida. Que pena.
No caminho de volta para casa, entre uns goles num suco de pêssego e uns registros na câmera, me deparei com um barulho que tem sido bastante comum no bairro: barulho de obra.
O meu bairro está destruindo os verdes e fazendo casas cinzas e sem vida. Arquiteturas quadradas com plantas projetadas, vidros por todo lado, cachorros altos e solitários. Cadê as janelas de madeira com coração? Cadê os chalés com portões pintados, quintal com plantas selvagens? Uma memória infantil que se esvai com o tempo. Placas e mais placas de “vende-se” nos terrenos enormes que serão construídos mini prédios ou casas enormes inflamadas num terreno loteado. Uma dor visual cortante.
Há duas semanas, as cerejeiras estavam à flor da pele, colorindo a serra com seu rosado juvenil e conquistando olhares que quem as enxergasse. Hoje, todas já murchas e galhos secando. O tempo muda a todo instante, sem nem percebermos. Daqui a pouco, não verei os verdes que moldam as montanhas, não escutarei os inúmeros cantos dos pássaros, não provarei o mel do Seu Luís, nem as framboesas silvestres do caminho que me cerca, nem sentirei o cheiro de pão fresco da padaria ou o cheiro de mato robusto ao pisar na grama. Nem caminharei nas estradas de barro que levantam poeira. O que será dos meus principais sentidos da vida?
Vida, por favor, não fujas de mim. Esses vestígios de uma vida plena e simples podem desaparecer. Nada recupera o tempo, o que nos resta é a memória. Porque quando os sentidos se vão, o mundo empalidece. E sem eles, o que sobra?
Podia ter sido apenas uma caminhada corriqueira pelo bairro. Mas foi memória além da rotina.



