Quem eu deixei de ser

Amadurecimento: ganhamos autonomia, mas perdemos o descompromisso

POESIAESCRITAS

5/21/20251 min read

Quando cresci deixei de ser espontânea das minhas vontades

Lembro das visitas sem aviso

do bolo calórico da tarde

dos penteados

das tardes sentada na calçada

a toa

A menina do interior e suas memórias

briga com o tempo severo

Adulta, agora,

retorno na calma do verde, porém sem vizinhos

O mundo tá tão cheio de gente

mas não vejo ninguém

Faço meu próprio bolo, mas sem açúcar

Cabelos longos, mas sem penteados

Pego sol matinal, mas com protetor solar

Casa vazia

Poucos amigos

Muitos gatos

Esse meu poema traduz uma das maiores contradições do amadurecimento: ganhamos autonomia, mas perdemos o descompromisso. Tenho, hoje, liberdade, mas opto por não enfeitá-la; talvez por cansaço, talvez por desobediência. Gestos que já foram leves agora vêm com escolhas, cuidados, filtros. O prazer se torna cauteloso. O desejo de viver intensamente ainda está lá, mas agora é mediado por camadas de proteção involuntária que a existência ensinou.

Com o tempo, descobri que não se divide a mesa com qualquer um. Há autocuidado e autopreservação. Mas também há memória do excesso e da dor, como um luto terno por decepções e por tudo aquilo que, com o caminhar, percebi que não me cabia. O corpo guarda tudo.

A vida adulta impõe limites aprendidos na pele. Toda dor deixa marcas — e essas marcas nos direcionam. Porque envelhecer é também se afinar. Com o tempo ligeiro, a gente vai ficando mais consciente dos próprios contornos. E nem tudo se encaixa mais. Hoje, me pergunto: Quem eu sou? Quem deixei de ser? Quem ainda quero ser? E levo essas interrogações para o meu (re)construir-se sempre.

Talvez à vida adulta falte a leveza e a coragem de antes. Mas, muitas vezes, é justamente essa falta que nos define.